Fernando Andrade entrevista o escritor Fábio Mariano

RUIDO BRANCO FABIO MARIANO - Fernando Andrade entrevista o escritor Fábio Mariano
 
 
 
 

FERNANDO Há um desenho bem interessante com se existisse entre duas imagens que se relacionam ou parelham em suas semiologias. Jogar com os espaços geográficos parece um linha do seus livros, com vemos as marcações de gente por sob a topografia do geo-espaço. fale disso

FÁBIO – Essa relação entre a cidade e o ser humano me atraiu desde o momento em que a descobri pela literatura, porque, de uma certa maneira, eu me descobri. Não existiria Ruído Branco sem Cartago, e na verdade, acho que minha literatura começa na imaginação do espaço. Todos os contos estão centralizados, de alguma maneira, nessa relação. Até por isso em vários dos contos existe o contraponto ao espaço de Cartago: a cidade vizinha, Buenos Aires, Praga… E para mim, de fato, o espaço só faz sentido quando é criado junto aos personagens. Mas ao mesmo tempo, esse espaço nunca é completo, nunca é um todo, ele é sempre um corte, um mapa sem simetrias e totalmente acidental, que se fixa na memória, na consciência e no corpo dos personagens através dos eventos. Talvez daí venha essa relação parelha: quando os eventos parecem se espelhar ou se repetir, os espaços também se emparelham. Lá no fim de Lindos Pulsos, por exemplo, existe um contraste entre um café que é um espaço de intimidade, de recolhimento da personagem, e o bar que é um lugar de expansão, de autodescoberta; eles não são simétricos, mas eles são parelhos, um desses lugares é o lugar dela, onde ela já é; o outro, é o lugar do devir dela, daquilo que ela vai se tornar. E de repente aparece um espaço que cria uma triangulação: o Sweet Mobster, um bar com um nome horrível, que surge de uma maneira inesperada, mas que abre uma nova possibilidade de significado: quem é que existe entre a menina que entra no bar de rock pela primeira vez e a mulher que entra num bar de rock depois de adulta, e como o tempo agiu sobre esses espaços? Acho que esse é o tipo de pergunta que eu gosto de levantar quando olho para essas simbologias do espaço.

 

FERNANDO – A escola-universidade é quase um espaço ou personagem nos contos. Há muito de uma humanidade mundana, com seus códigos, idiossincrasias. Fale disso.

FÁBIO – A escola e a universidade são mundos nos quais eu me sinto confortável escrevendo – é claro que é uma zona de conforto para um professor, alguém que passou mais da metade da vida ligado à universidade. Foram 4 anos de graduação, mais 4 anos de mestrado e mais três anos de uma especialização, circulando entre as artes, a literatura e a economia. A minha experiência da universidade foi muito profunda, embora tenha sido muito dolorida em diversos pontos – sobretudo na graduação. Mas as coisas mais profundas e mais bonitas que me aconteceram na universidade foram as pessoas, então acho que é sobre isso que eu tento escrever – sobre pessoas conversando com pessoas, cuidando de pessoas, ajudando, agredindo, sonhando, humilhando. É importante também que se entenda que a experiência universitária que eu vivi era a de um momento de euforia institucional: era o governo Lula primeiro, e depois do governo Dilma, e havia a expansão das federais, e a chegada de muita gente à universidade que alguns anos antes não via possibilidade de que pudesse estar ali. Isso é muito grande, é muito forte, não só no impacto social, mas no impacto individual, humano, que depois vai reverberar no impacto intelectual. Esse esforço que existe hoje para demonizar a universidade pública tem um limite – ele não vai conseguir apagar o fato de que essas experiências de vida de fora de uma classe média branca hétero cis e que estudou na escola particular a vida inteira (à qual eu pertenço) transformaram a perspectiva do pensamento brasileiro. Os frutos estão aí agora, mas vão aparecer ainda mais no futuro, e como a gente precisava e precisa dessa mudança! Eu não tinha noção do que era a vida antes de entrar na universidade, da pluralidade das experiências de vida, para mim existia um caminho automático, lógico, que deveria ser seguido. A grande transformação, para mim, foi conhecer a história do estivador que trabalhou cinco anos no porto de Santos e estudou à noite para deixar dinheiro com a mãe para que ela pudesse viver por outros cinco anos enquanto ele ia se formar. Porque não é a história do sacrifício, do “batalhador”, não, é a história de alguém que tem um plano consciente de transformação da própria vida e que só é possível porque a sociedade olhou para o abismo social que ela era e decidiu diminuí-lo. As histórias dessas vidas que foram transformadas importam muito, e me encanta olhar para isso, para as vidas transformadas e para as consequências dessas transformações. Em Infierno, por exemplo, o restaurante só existe porque o poder de compra de uma classe média alta aumentou durante um grande período de tempo, e isso ocasionou uma transformação no padrão de consumo da sociedade das grandes cidades brasileiras. Só que isso foi acompanhado de uma ascensão social que essa mesma classe média desprezava. O que acontece no restaurante é fruto disso, dessa ideologia racista, misógina, que elegeu Bolsonaro e que se conecta a uma ascensão dos padrões de consumo dessa classe média alta. O conto termina dizendo que é a história de Amanda, e não a do protagonista, que merece ser contada – e o conto seguinte chega um pouco mais perto. Mas a história da Amanda nunca é contada – por quê? De quem são as histórias que ainda não contamos?

 

FERNANDO – Quanto para você é importante que amizade seja um elemento semiótico que faça a paisagem do conto, como até cobrindo as relações de Gêneros?

FÁBIO – Acho que essa é a pergunta mais simples de responder – a amizade é o tema central, talvez, de tudo quanto eu escrevo. Porque ela não é uma relação só, ela é um conjunto múltiplo, diverso. Ela não é necessariamente uma relação perene, um compromisso duradouro, mas ela é com certeza um compromisso com um lado de você mesmo que ou você desconhece, ou que você se recusa a enfrentar. Claro que existem amizades para toda a vida, mas a gente não sabe. A amizade entre o Dito e o passageiro dele em Os Cárpatos é muito diferente da amizade entre as mães da Antônia e a madrinha dela. A amizade entre Bernardo e Germano é completamente diferente da amizade entre a protagonista de Lindos Pulsos e as meninas da escola. Nós só conseguimos atravessar essa vida – e atravessar de modo a aprender algo com ela – se estivemos dispostos à amizade. E no entanto, a amizade pode ser o véu que encobre a violência, a maldade, o escudo de proteção dos abusadores, dos racistas. Então para mim ela é sim uma questão central porque não só os modelos de amor podem ser danosos e cruéis, mas os modelos de amizade – e acredito que os efeitos dos modelos violentos de amizade são mais corrosivos. A violência do amor é um petardo, causa danos profundíssimos e deixa marcas indeléveis. E a violência da amizade, diferente disso, vai erodindo, então ela é muito mais sutil, mas ela mina as possibilidades de recuperação. Então eu opto por discutir a amizade, porque vejo uma importância enorme nela.

 

FERNANDO – As relações entre sexualidade e literatura lendo estes contos me lembrou Roberto Bolaño. Ele é um referência forte na escrita?

FÁBIO – Bolaño é com certeza uma das minhas grandes referências. Eu entrei no conto pela porta da América Latina, e mais do cone sul que da América Latina, e mais da Argentina do que qualquer outro lugar – mas sempre penso no Bolaño como latino-americano porque ele mesmo se definia assim. Na verdade: começo a escrever contos por conta de uma disciplina oferecida pela professora Miriam Gárate na Unicamp.
Lemos ali alguns dos autores que se tornaram paixões minhas: Onetti, Bioy, Roberto Arlt, Cortázar, García Márquez, Bolaño… Foi lá também que conheci o Ricardo Piglia – de quem gosto menos como contista e mais como analista das formas breves. E é claro que o caso do Bolaño é mais próximo, mais imediato, em certo sentido – mas a gente vai tentando aprender aqui e ali, tentando entender primeiro o que está sendo discutido naquele autor, em termos de linguagem, de experiência de mundo e de como essas duas coisas se relacionam. E a gente vê os próprios autores como aprendizes de outros quando se dedica, lê com atenção. Eu olho pro Bolaño de “A Literatura Nazista na América Latina”, por exemplo, e é claro que a presença do Borges está lá, esse grande catálogo imaginário de referências que cruzam ficção e realidade. E esse livro ganha uma espécie de comentário, uma mini versão, no conto “Fotos”, do Putas Assassinas.
Nesse conto, Arturo Belano está na África folheando uma antologia de poetas surrealistas franceses contemporâneos. E essa influência do Borges continua ali, mas agora transformada por algo que é muito marcante do Bolaño, que é captar a experiência do deslocado. Acho que ninguém que eu li faz isso como ele, e os detetives selvagens é um grande catálogo também, mas um catálogo de deslocados, de pontos fora da curva, de loucos… Ele me lembra muito uma palavra alemã, verrückt, que num sentido mais imediato quer dizer “louco”, mas que também traz em si o sentido do deslocamento. O Günther Anders, no livro dele sobre o Kafka, Kafka Pro&Contra, analisa isso, e essa palavra, para mim, se aplica muito a um tipo de sentido que está no núcleo da experiência de mundo que o Bolaño propõe: um “desloucado” (é assim que o Modesto Carone traduz a palavra na sua tradução ao livro do Anders), mas esse desloucamento – e é aqui que o Bolaño dá uma guinada em relação ao Borges – esse desloucamento é social na minha visão, tem a ver com as estruturas de poder, com a divisão internacional do trabalho e com o lugar legado à América Latina nela. De modo que quando somos violentados, não é só a violência de Estado que nos agride, mas a violência do sistema de Estados – e isso é visível nos contos do Bolaño para mim, mesmo quando é invisível à priori, como no caso de Gomes Palácio (talvez meu conto preferido dele, coisa muito difícil de definir).

Agora, sobre o outro foco da pergunta, as relações entre sexualidade e literatura, infelizmente eu tenho muito pouco para dizer. Eu acho que disse tudo isso sobre o Bolaño porque a questão da sexualidade me interessa especialmente no lado social, e no lado da violência social e dos estigmas. Essa questão da violência, na nossa sociedade, nunca deixa o sexual de lado, e acho que é por isso que ela é tão importante para mim.

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