“ver as sombras no tecto, a efervescência das palavras” – três poemas de Judite Canha Fernandes

 

 

 

o mais difícil do capitalismo é
encontrar o sítio onde pôr as bombas

judite canha fernandes
[editora urutau, 2017]

 

 

 

 

 

férias é

perceber que quando o sol se tapa o mar escurece.

ter tempo

ver as sombras no tecto, a efervescência das palavras,
as árvores a tentar respirar contra o vento, coitadas.
fazer festas aos cucos, namoriscar os pássaros.
ter ideias. boas.
fazer testes ao vácuo,
observar a consistência da alegria,
escrever palavras ao acaso.
mergulhar.
processar as dores, a estupefacção com a crueldade e a ganância,
perceber apenas o medo, apenas.

observar calada a tua alegria de flor pelas vitórias inacabadas.

ver filmes a meio do dia com uma manta nas pernas
comer porcarias e chocolates
não sentir culpa nenhuma.

andar.

deixar o mundo andar sem olhar para ele
[ele anda sozinho]

olhar para o que não se vê
não ter raiva do inverno nem da chuva,
saber que a utopia anda às elipses como boa tartaruga.
dar beijos à luta para não esquecer o sabor que ela tem,
dançar.
não usar vendas no cérebro ou no coração,
não dizer “sim, mas…”.

perder-se no meio de um livro para encontrar outro
deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

escrever com as mãos geladas nas esplanadas
não ter medo que as esplanadas voem,
ou de lavar o caderno nas lágrimas.

pensar. escrever cartas. não pensar.

perceber que o vento assobia no pescoço antes de entrar nas orelhas,
que se pode chorar de prazer quando se ri,
qual o tamanho do ecrã na casa.

dizer adeus e ficar dentro das pessoas.
falar com quem se gosta sem ver.
dançar com a música em mute,
deitar-se devagarinho.

férias, meu amor, é bom.

 

 

síntese

fui à televisão ver
se o mundo tinha mudado.

assisti a vinte minutos de publicidade.

 

 

A fúria da loiça da china
judite canha fernandes
[editora urutau, 2017]

 

 

sem título

entrei no grande tribunal,
digo,
entrei no hospital, de olhos baixos,
digo,
baixaram-me os olhos na triagem do hospital porque escorria,
digo,
porque escorria alguma vontade sobre o meu corpo,
digo,
sobre a minha vida que o céu caíra-me em cima
e eu sabia
que não era o astérix, era só o bardo.

subi as escadas,
digo,
tropecei na bata branca que meteu os dedos,
digo,
espetou os dedos com quanta força tinha na minha vagina,
digo,
para me castigar
porque eu não queria
e eu não posso não querer,
por isso digo,
porque eu não tinha,
digo,
dinheiro para pagar sorrisos e perfumes nas batas
e perdão no hospital.

 

 

à noite, no seu quarto, sonha

começa por se sentar
e somar a conta da água
com a da luz e a do telefone
como quem conta conchinhas
enquanto come o que sobrou do jantar

depois mete música
e vai lavar
a cara
e os dentes
enquanto vai falando
consigo mesma

despe-se
até ficar só
com a camisa de alças
pretas
e as cuecas
pretas
e umas peúgas fofinhas
às riscas

acende o candeeiro
e ouve piazzolla
até adormecer
como quem conta conchinhas
enquanto dança o tango.

 

 

Judite Canha Fernandes nasceu no Funchal em 1971 e foi viver para Ponta Delgada, onde cresceu, em 1980. É doutorada em Ciência da Informação, licenciada em Ciências do Meio Aquático, pós-graduada em Biblioteca e Arquivo e procura agora iniciar um pós-doutoramento em Estudos Literários. É escritora e dramaturga. Publicou, em Portugal, no Brasil, em Espanha, e em Itália, poesia, ficção e teatro. O livro o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas foi semifinalista no Prémio Oceanos em 2018. O seu romance Um passo para sul foi Prémio Agustina Bessa Luís em 2018. 

 

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