RESENHA PARA O LIVRO DE Wanda Monteiro “A LITURGIA DO TEMPO E OUTROS SILÊNCIOS”

por Ana Meireles

( Poeta e escritora brasileira)

 

Iniciei a leitura de “A Liturgia Do Tempo e outros silêncios” sentindo sensações, percepções, leve e sutil impressão de brisa a afagar meu rosto. Segui leitura tentando beber a linguagem da autora , Wanda Monteiro, visualizando-a , na imaginação , sentada sobre a areia da praia de Icaraí- Niterói, com o vento a bater-lhe nas costas…, expectando sentir a sua pele poética embrenhada nas palavras.

Fui adiante nas imagens, o tempo não para, não dá pausa, prossegue, corre feito um rio cujas águas mais profundas não se vê a força de ação e por assim dizer faz causar enganosa impressão de plácido espelho, quando, estagnados ficam nossos olhos sobre sua superfície. Sim, a poeta, embarcada nas águas deste rio que corre e denominou de tempo, viajou nas suas invisíveis estações alcançando navegação pelos seus afluentes que concomitantemente prescrevem sua geografia silenciosa.

No curso de sua vazão, deparei-me a certa altura sentindo que já viajava com a Poeta-Escritora na canoa indirigível da emoção, sentindo o corpo do seu rio-tempo a me provocar a descida de lágrimas num agora que “No exato ato da escrita não há nada fora do tempo.O tempo é essa corrente: ora me afoga ora me salva.O tempo me traz ou me leva à hipótese do lugar – qualquer ponto onde possa caber o tempo da escrita”. Senti-me com a indelével impressão de estar em presença da autora.

Foi neste preciso ou precioso momento que se deu a desembocadura do Rio-Escritura da Poeta com o Rio-Leitura do meu sentir de águas em corpo caudaloso. Sim, Ela, Wanda Monteiro, pela via do sensível , via expressa da poesia, experimentou em divagação a força incoercível e transitória do tempo como fluxo incessante comparável as águas de um rio que a correr assinala a inevitável transitoriedade e impermanência dos seres:

 

“ inútil intento domar o tempo
ele sempre volta ao cume
conjuga-se à revelia
de minha desmedida vontade

com olhos de escárnio
mira-me
de dentro da areia
como irrefutável sentença

 

Não tem como deixar de registrar no decorrer da leitura , que o livro é encontro e alternância entre o pensamento filosófico e a poesia, desde a sua epígrafe com a referência ao pensamento de Martin Heidegger. E que seu título “ A Liturgia Do Tempo e outros silêncios”fornece nascente e foz verdadeira ao conteúdo que lhe preenche: É o tempo uma Liturgia ao qual todos os seres hão de transver em penetrantes e dolorosos silêncios:

 

“Na morte,
…não há contenção
diante da inexorabilidade
de seu acontecimento…”

“…era um voo sem prumo
de malogrado fôlego
a asa carecia de força e fúria
para vencer a brandura do vento
alçar o azul…”

Na saudade,
“a saudade é um silêncio
dói de agonia
dói de espera”
No envelhecer…
“…solo que já não floresce
esfria
desfolha.”
É o tempo, sentença cuja vã ilusão de domar é inderrogavelmente inútil, pois,

“pessoas são como rios
verdades passageiras”

 

Quando agarro-me a palavra “sentença” citada no último verso do poema anteriormente transcrito -como irrefutável sentença- é na intenção de tentar apreender o sentido concebido pela autora na alusão ao “tempo” como uma “liturgia” que acompanha “outros silêncios”. Neste cometimento o pensamento caminha e resvala nos rios de nossa humanidade por vezes adoecida, intentando negar as perfurações do tempo na própria derme. Há algo mais , de muito a ser dito, na profunda poética da autora cuja percepção das questões existenciais, no belo poema a seguir, permite captar sua sensível voz poética:

 

“ nem só de orvalho vive a madrugada
há um quê de cinza e pétreo
em sua soturna geografia
na insônia das casas
uma desassossegada espera

o medo move-se nas grades
a morte vive no dobrar das esquinas
os andrajos adormecem sua sobrevida sob as marquises
os bares farfalham o som da embriaguez
a solidão caminha trôpega
e às cegas pelas ruas

na madrugada
a fumaça do cigarro tem uma música triste
tons de azul no aroma de nicotina
na conversa embargada de álcool
há um quê de esquecimento
em cada palavra cuspida o chão”

 

O tempo é fenômeno invisível dos sentidos, que ao corpo fala e cala em sua linguagem silente/inaudível , de fraturas e fragmentos de memórias, linguagem de corredeira , de rio, de ruas , paredes e esquinas… que embalam uma nostalgia necessariamente abortada pelo “frenético som da buzina e do ranger de pneus”. A poeta disse e faço minhas a continuidade de suas palavras: Eu quase morri. A esquina é outra.

Sim, a esquina é outra: é uma conversa poética/filosófica com outros verbos, outros versos e outros nexos , estabelecida no chão itinerante do tempo, o tempo da poesia que mergulha em memórias…

 

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