De amor, luz e sombras

Só há um tipo de amor que dura, o não correspondido.”

 

por Gustavo Santorini

A sentença, proferida pela personagem de Jodie Foster em ‘Neblina e Sombras”, filme escrito e dirigido pelo genial cineasta norte-americano Woody Allen, evoca um tipo de cinismo que parece servir de tônica para os relacionamentos modernos, o qual também se manifesta nas produções artísticas. Ora, não é para menos, uma vez que se convencionou rotular a arte como “o espelho da sociedade”. Ocorre que, se antes esse traço de niilismo ressoava como uma necessária nota dissonante as ilusões do status quo oriundas do pós- segunda guerra (inclusive nas saborosas comedias românticas do próprio Woody), tal elemento fora por demais violado nesse início de século, a ponto de ser chancelado como ingrediente sine qua non para uma obra adquirir o verniz de “grande arte”. Para aqueles que se aventuram a falar de amor, então, a missão é ainda mais inglória. Ser cool é ser cínico, e qualquer tentativa de lirismo logo é rechaçada  como piegas ou termos congêneres. Em consequência disso, no gênero poesia, especialmente, pululam autores que renegam qualquer pendor mais, digamos, romântico, e parecem competir entre si na tentativa de pastichizar a irreverência de um Leminski, ou a enganosa displicência marginal de um Bukowski, por exemplo. É nesse cenário de simulacros que “O Amor Curvo” (Oito e Meio/2018), do poeta e ensaísta Daniel Gil, surge com o frescor de uma voz sem medo de sangrar. Nele, o lirismo e o cinismo não são excludentes, isto porque Gil habilmente os tinge de matizes indistintas, como nos seguintes versos:

“Minha amiga, não chame o seu amigo/De “amigo”. Antes, dê-lhe uma facada/No abdômen e tire fora o seu umbigo/Mas “amigo” é palavra atormentada/Um “não” certeiro e pronto! E mais nada/Ou de comparsa, cúmplice ou prefira/Chamar de transviado, pombajira/Mas nunca dessa música assombrada”.

Vale destacar as belíssimas ilustrações que recheiam o livro (inclusive a capa), de autoria de Felipe Stefani e a impecável edição de Flavia Iriarte. Cada poema é batizado com uma letra do alfabeto, e assim as páginas de “O amor curvo” se descortinam tal qual um véu de cores, paladares e texturas:

“Você vai sentir a mão/Do mesmo por do sol/Ela vai tocar seu/Rosto e pescoço/Contornar seio e/Costas, você vai/Anoitecer.”

O poder imagético do livro é imenso, embora (ou por conta de) sua força resida em verbalizar os pequenos assombros de quem ama. Isto porque a escrita de Daniel Gil não padece da frieza beletrista de quem se observa apenas na terceira pessoa, mas antes abraça a palavra como única via para corporificar a perplexidade latente, vide os versos:

“Eu te amo com espanto/e solidão/com as lâmpadas obliquas/do céu fechado/da roupa esgarçada/do incrédulo que reza/E não sabe”.

O simples coito entre homem e mulher e a consequente gestação ganham ares metafísicos no poema M:

“Pulsa dentro/De tuas flores/O principio/Vital/Ramos de amor/Se dividindo/(…)Vidas futuras, invisíveis/Voam no espaço/Entre a terra/E as tuas flores/Aguardam a travessia/De um pequeno rio”.

Entre analogias originais e metonímias eloquentes, os versos lançam algumas piscadelas para o cinema e a música, revestindo-se de um agradável apelo pop:

“O amor perpassa o policarbonato/A matéria magnética dos discos/Kubricks, polanskis, a anteposta luz ainda a desvelar/Seus dentes místicos/Incidem sobre cordas, pregadores/As roupas gotejantes da semana/A máquina, a memória (tudo gira e se desbasta, mas o amor acorda as cortinas).

Seja na forma de graça alcançada ou oferta repelida, o sentir amoroso reencontra em “O amor curvo” o altar que há muito lhe era devido na poesia.

 

 

Foto Perfil GUSTAVO - De amor, luz e sombrasGustavo Santorini nasceu no Rio de Janeiro, é escritor e crítico de cinema e literatura. Atualmente em fase de desenvolvimento de seu primeiro romance O Tatuador.

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