Entrevista com o escritor Alexandre Rabelo e participação de Cristina Judar

 

 Fernando Andrade Por que a opção por estruturar o romance como se fossem blocos narrativos de tempo-espaço para desenvolver os personagens. O que isso te facilitou na questão “fragmentada” dos dois personagens que transitam por tempos diferentes e vão fazer um passeio de barco rumo à uma ilha? 

Alexandre Rabelo – É isso mesmo, Fernando, a imagem de uma viagem de barco, entrecruzando por um conjunto de ilhas com regras próprias, fabulescas, dilatando o tempo cotidiano e, no mesmo instante, condensando a experiência em unidades que se comunicam de forma não tão retilínea. Os dois personagens, o mais velho e o mais novo, observam as mesmas ideias a partir de suas próprias memórias, ambos têm o mesmo distanciamento e paixão. Ambos querem um tempo do mundo dos homens e, talvez por isso, consigam conviver durante o lapso que dura a viagem de barco, nem um segundo a mais. Eles habitam temporalidades que são aparentemente distintas, por serem de gerações diferentes, mas minha pergunta é o que há de comum entre a geração X e os millenials. Eu também tentei cruzar os tempos tal como os observo na era da pós-verdade. Cada experiência na vida é única, mesmo que nossa imaginação interligue várias delas numa trajetória linear, mesmo que a gente crie nossa mitologia particular. Cada vida real é um romance sem fim. Gosto de pegar alguns fragmentos dessas vidas e dilatar ao máximo, como se toda uma existência pudesse ser resumida ou simbolizada num único instante. Podemos chamar isso de metafísica do instante. De todo modo, foi isso que me guiou intuitivamente para a criação de um romance em que cada momento fala sobre o todo em níveis tão diferentes, sutis, que eu não precisava mais dar uma unidade de estilo, apenas criar alguns ganchos simbólicos entre as ilhas. Cada capítulo ou experiência é um outro romance cujo fim será o início do próximo. Muitos autores ajudaram a gente a pensar a quebra da unidade temporal e espacial do romance. Estou interessado em quebrar com unidade de estilo, acho que isso é o que causa mais estranhamento, porque ainda vivemos a função da “autoria” e “identidade de estilo” de forma muito arraigada no meio literário, diferentemente de outras artes coletivas. Gosto de criar a ilusão de vozes de escritores com interesses muito diferentes em cada capítulo, mas é tudo um truque, e o leitor percebe e vem junto. Não quero propor um único olhar. Na literatura, temos a liberdade de apenas nos revirar nas contradições.

 

Fernando Andrade Seu romance me fez lembrar de como certas fábulas podem mexer com o inconsciente que se guarda tanto nos aspectos moleculares dos personagens quanto num certo clima de estranhamento para o qual o enredo caminha e que faz os fatos serem críveis apesar de sua potência fantasmática. Claro, citando a cena da muralha, (da tatuagem), certo clima de sonho-e-vigília. Fale um pouco disso?

Alexandre Rabelo: Nessa minha busca por quebrar com a unidade de estilo do romance, tentei abordar cada capítulo a partir de diferentes matrizes narrativas. Flertei bastante com enredos de mistério, crime e suspense, relidos por Poe, Borges e, nesse caso específico, Maupassant, que deslocou a ideia de onde estava o exótico para o ocidental. Trago também uma linguagem que brinca com a prosa subjetivista de um lado e o romance histórico, de outro. Quero olhar para os movimentos do indivíduo reportados a algumas questões sociais. Às vezes, parto de um problema, às vezes de uma imagem mais intuitiva. No caso da viagem que o personagem faz para China, foi uma imagem que me veio num sonho, de uma descoberta ancestral do corpo, e de como mal conhecemos pontos fundamentais de nosso instrumento vital. Nessa época, eu andava estudando correntes filosóficas chinesas, mas o que acontece no meu livro foi invenção minha, com uma visita local pelo Google Maps e outras fontes de pesquisa. Digo isso porque muitas pessoas têm me perguntado se estive mesmo lá. Eu acho que o brasileiro tem uma vocação para o mágico e a literatura é sempre um ótimo espaço para explorar isso. Mas hoje não se trata apenas de saudar o passado, ou continuar no realismo mágico passadista . Esta força está presente agora e pode inclusive abrir uma nova estruturação para o romance, que pode partir de uma lógica em direção a um caminhar mais intuitivo, no encadeamento das experiências. Gosto de trabalhar na encruzilhada entre o mitológico e o tecnológico, entre a ancestralidade que nos religa e o cinismo da vida contemporânea. O brasileiro sabe sambar, ou navegar, por esses dois extremos.

 

Fernando Andrade – Você usa uma linguagem que se adere muito bem ao romance, ela é fluida, cheia de matizes sobre os sombreamentos do que vai acontecendo. O que apareceu primeiro o enredo, ou a forma de contar ele? 

Alexandre Rabelo: Muito obrigado! Depois que terminei meu primeiro romance, o “Nicotina zero, desintoxicação em uma noite”, que tem unidade temporal e espacial, já que se passa numa noite no centro de São Paulo, e que apresenta também uma imersão na subjetividade de um único personagem, eu queria olhar para fora, e de uma forma mais histórica, pensando muito a questão da corporalidade hoje. Primeiro surgiu uma tentativa de explorar a intersecção entre o meu lado feminino e minhas amigas. Neste caso, passeei bastante pelas mestras do nosso canône, como Clarice, Lygia, Hilda.  Mas também todo tipo de literatura subjetivista, como Virgínia Woolf, Joyce, Beckett. Como seria juntar isso com um certo realismo mágico meio kafkiano, borgiano, e ainda com tributos a Poe e Maupassant? No entrecruzamento que faço desse autores, tenho aprendido a ver a magia do cotidiano, e eu só via cinzas, como um monte de escritor por aí.  Isso me salvou. Ouvi as vozes de guerras antigas. Então, “Itinerários para o fim do mundo” foi uma experimentação estético-existencial rimbauldina. E daí, desce “ladeira abaixo” pelos fabulistas clássicos do romantismo europeu mais rebelde, Kleist, Mann, mesmo Flaubert, na tentativa de trazer uma dimensão histórica e mitológica para essas vivências ilhadas. Eu queria retornar a esses mestres com os olhos dos escritores brasileiros de hoje, cada vez mais canibais. Então, foi bem difícil estruturar essas vivências num produto final agradável a mim e ao leitor. A cisão entre os dois personagens e o tipo de mitologia pessoal que eles apelam foram ficando claros à medida em que fui juntando as peças e acrescentando outras. Não escrevi este livro de forma nada linear, mas tentei atar os nós inclusive no projeto gráfico do livro, que muda a cor das páginas e fontes, segundo as vozes que entram e a sintonia que há entre elas. Não me inspirei em nenhum romance que admiro para estruturar a forma-enredo deste. É um risco,como outros amigos do meio tem feito de formas diferentes. É um momento fértil para nossa literatura. Mas no fim, o critério é o diálogo entre uma narração fluída e um enredo quebrado, o que costuma ser motivo de prazer para o leitor.

 

Fernando Andrade – Como foi a leitura da Cristina Judar no livro? Como foi este alinhamento com ela, sobre a intimidade do livro, na questão do original ainda não exteriorizado.

Alexandre Rabelo: Apesar de nos falarmos cotidianamente e nos consultarmos para detalhes mínimos de nosso dia-a-dia banal, eu e a Cristina Judar temos muito respeito pelo espaço selvagem de escrita um do outro. A gente só manda as coisas depois que está pronto para editar. No caso dos Itinerários, eu pedi para ela prefaciar e disse o que era só depois que terminei o romance. Mas é claro que nós já sabemos que temos vários pontos em comum em nossa vida e literatura, sendo talvez o mais forte esta itinerância vaga que nos seduz e que estrutura nossos livros desde antes de nos conhecermos. Além, é claro, da atenção que gostamos de dedicar para a mistura possível entre uma existência que leva em conta as ancestralidades e um olhar para o futuro e as novas formas de amor, identidade, comunidade entre as pessoas. Quando a Cris leu o romance, disse que gostaria de ter visto melhor o que aconteceu no momento final dos dois personagens, que eu tinha deixado muito no mistério. Então, escrevi um novo capítulo de cinco páginas para o segmento final, o que foi realmente um posicionamento importante a se tomar. Ela também foi pontual num pequeno erro de continuidade. De resto, a culpa é toda minha.

Cristina Judar: Ter a obra de alguém tão próximo para ser lida em primeira (ou segunda) mão / versão marcou outro momento da nossa comunicação. Muito do que eu já sabia sobre a literatura e o pensamento do Rabelo foi confirmado, embora eu tenha tido muitas outras surpresas – ou “puxadas de tapete”, (no melhor sentido). Minhas inserções foram mínimas, comentei sobre alguns pontos que Rabelo já citou acima. A parte em que minha voz está mais presente é, obviamente, no prefácio, no qual, entre outros pontos e aspectos, falo sobre as representações do masculino trazidas pelo livro, que, a meu ver, colaboram para uma nova construção literária daquilo que vemos e vivemos, mas que ainda tem pouca visibilidade e representação, justamente pelo fato de os escritores terem, quase que em sua maioria, um mesmo tipo de visão, de experiência e de atitude em relação à vida e ao mundo. É preciso ampliar o olhar para o que ainda está fora ou muito mal representado literariamente. Com ‘Itinerários’, Rabelo colabora pra que o cenário seja mais diversificado e esse é, sem dúvida, um dos pontos mais fortes e significativos desse trabalho. 

 

Fernando Andrade – A mítica do fim do mundo de certa forma foi muito projetada pelo POP, tanto em canções como em filmes. Que “empréstimo” você pegou deste contexto, principalmente os anos 80?   
Alexandre Rabelo: Eu queria mostrar que a cultura pop , e mais especificamente a cultura televisiva, foi estruturante de nossas cabeças de criança nos anos 1980, de um ponto de vista histórico. A tevê tinha um poder mortífero. Muita gente flerta com esta cultura de forma nostálgica. Eu detesto nostalgias. Como escritor e historiador, quero acreditar que o melhor tempo é o devir, a construção. Olho para os anos 80 como uma época de ressaca dos anos 60 e 70, o que acabou projetando todo imaginário e mercado voltados para a criança. Havia muita expectativa sobre nossos futuros, e depois nos chamaram de Geração X, nome que revela todo o apocalipse por trás da euforia perdida. Eu realmente admiro os monstros sagrados do pop americano, na literatura, cinema, música, artes visuais, apesar de não estarem na influência principal. Vou mais pro lado de Faulkner e David Lynch, que jogam com o mistério das narrativas soterradas, fragmentadas e sombrias. Não podemos simplesmente contornar essa influência pop, entretanto. Sou um antropófago de 1000ª geração haha. Uma vez, ouvi Michael Jackson falando assim para acalmar a irmã dele numa entrevista: “Latoya, eles só querem saber o que a gente faz para, apesar de tudo, se sentir tão bem.“ Acho que esta é a essência do artista em geral nos nossos tempos, e me deixo guiar por esta influência. Em tempos de incertezas, o simples corpo tem que celebrar. Talvez o fim do mundo possa ser um recomeço.

36755322 1739326756144650 4258675926155395072 n 300x300 - Entrevista com o escritor Alexandre Rabelo e participação de Cristina Judar

Fernando Andrade, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie,  Editora Penalux.

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial