o prisioneiro – conto de André Balbo

 

O prisioneiro

 

… perdão para aqueles que morreram em desespero; boas novas para os que morreram sem assistência em calamidades.

Herman Melville, Bartleby, o escriturário

 

…chamai-me Ismael ou Estevão e não atenderei a nenhum dos flertes, pois faz quatro séculos, tendo sobre a canastra a condenação do tronco a uma degola, tenho estoicamente recusado deixar-me ser descabeçado, tão fundo no sono, qual labuta profunda e inocente quando arrancha-se na carapaça do caixeiro-viajante exausto da jornada, tão resoluto sobre a premência da morte, e incorrigivelmente bêbado, que, ainda que se me descabeçassem, tão só duplicariam minha indiferença, e, por isso, não atenderei a nenhum dos flertes, pois nesses quatro séculos se fizeram pra mim razão de menosprezo, mas, se por capricho dou a torcer, chamai-me Bernardino, que, como qualquer nome, é o evento fundante da minha existência, pois é a nomeação, e não o intercurso lúbrico dos licores ascendentes, a fusão das membranas dos gametas ou a expulsão do útero materno, é a nomeação, insisto, a gênese verdadeira de todo e qualquer homem, e assim é no Gênesis e com igualdade em Darwin e em Lacan, equivalência retórica suficiente pra convencer que sobre essa minha asserção não paira dúvida, como também não há dúvida de que, depois de mais de quatrocentos anos abstraído numa azáfama modorral, é certo que das profundezas de meus oitenta por cento água salgada se pode puxar, se não qualquer besta simbólica, álcool suficiente pra escusar tanto sono e indolência, pois foi sempre assim que se explicou tudo como aquilo que eu disse numa certa manhã, quando, à entrada da minha cela, uns filhos da puta fizeram tanta barulheira logo cedo que, tendo eu ido dormir de tão bêbado na noite anterior, quando me acordaram gritei “que suas gargantas apodreçam”, foi o que eu gritei pra que se calassem e fossem embora dali, que eu estava com sono e queria dormir a sono solto sem destampice alheia me importunando, e na verdade essa cena se repetiu durante coisa de nove anos, que foi o meu tempo de estufilha sem que tivesse se provado contra mim crime algum, nove anos e nenhuma prova, inacreditável; é claro que exagero quando digo quatro séculos, foram nove anos, até que um dia me acordaram pra que aprumasse as pernas e me agarrasse com fervor e em voz alta às preces, pois tinha chegado o decreto da minha execução, mas é óbvio que eu não o aceitei, não por que da morte tivesse qualquer temor, ou com a vida qualquer compunção pra resolver (isso já falei que não era problema), mas porque eu estava muito bêbado, o suficiente pra só conseguir dizer “seu escroto, eu bebi a noite inteira, não estou pronto pra isso” foi o que eu consegui dizer pro maldito que me acordara, pois que me degolassem quando eu estivesse sóbrio, ou do contrário precisariam arrancar os miolos do meu crânio a pauladas; e sendo assim impassível, quem tinha o poder de prescrever minha expiração entendeu que eu era uma criatura de pedra, despreparada pra viver e pra morrer, e que me executar naquele estado seria um ato condenável, foi isso que quem tinha o poder de prescrever minha expiração entendeu, ou melhor, disse que entendeu, porque o que eu descobriria dali a alguns dias, fisgando da indiscrição linguaruda de dois sentinelas, é que sob a gabardina da virtude daquela indulgência levedava a gangrena pustulenta da infâmia, modo eloquente de dizer que nem tudo que reluz é ouro: minha sentença fora originalmente concebida como uma empresa torpe, consistente num embuste de permutação de cabeças degoladas cuja causa inicial faz lembrar a quarta novela da primeira giornata do Decamerão, na qual um monge que, tendo cometido pecado merecedor de punição severa, escapou da pena repreendendo, ao seu abade, uma culpa semelhante; e da minha própria novela o resultado foi que, tendo eu esquivado-me do câmbio vil, continuei a temperar a goela dia após dia, sem reticência, às vezes acendendo a lamparina durante madrugadas inteiras, e com efeito não houve manhã em que despertasse preparado pra morrer, passando-se meses, anos, décadas, séculos — eu disse boas vezes e repito porque essa é a verdade: quatro séculos se passaram, e, portanto, recusando deixar-me ser descabeçado, ainda hoje vivo, não mais agora entre os ferros, dos quais fui relaxado há bastante tempo, mas entre a gente comum e incomum da cidade cheia de pernas, podendo ser encontrado todos os dias em horário comercial, à exceção dos finais de semana e feriados, em meu consultório na sala 58, no décimo segundo andar do edifício verd’espelhado, na quadra entre a sorveteria e o pastel do Juca, na Rua Equador, região bastante boa pra quem se acostumou a quatrocentos anos de xadrez, mas não tão boa como outras que existem por aí, e vejo que nesse mundo muita coisa mudou, como dizem, mas, segundo me consta, o homem ainda não fritou ovos e bacon em Marte, embora a gente bem estudada da ciência dia-sim-dia-não diga aos jornais que tal evento está cada vez mais próximo (o da fritura dos ovos, por óbvio, tendo em vista a crise mundial do bacon desde a segunda invasão da baía dos porcos), mas não mais próximo do que a morte de Ângelo, meu irmão, a quem nunca ofereci aperto ou abraço ou sequer um copo de cerveja pra que pudesse a efervescência motriz da bebedeira abrir frinchas pro caminho da amizade ou da indiferença respeitosa, pois minha indiferença típica não admitia respeito, o qual eu reservava com exclusividade pra meus pacientes de terapia, sendo certo que uma postura mais agressiva de minha parte, do tipo maldizer ou chutar os bagos, enquanto psicanalista, redundaria num problema evidente: escorchar duas vezes o mesmo engenho, de modo tão desbragado, tão dissoluto como me reputavam nos tempos de clausura, e em tão curto espaço, seria um exagero, não em si, mas porque prescindível pro desfiar da intriga, e mesmo porque já haviam proclamado as aves de rapina do dilúculo a minha estrela: desvendar qual dos meus pacientes seria o assassino do meu irmão Ângelo, que eu descobriria finado na manhã em que perfaria exatos noves anos de prisão e que, ao final do dia, não sei por que — talvez por conta da mais absconsa mecânica alélica — deixaria de beber e pela primeira vez me encontraria sóbrio da mente e cônscio das coisas, pronto pra aprumar as pernas e me agarrar com fervor e em voz alta às preces, pois tinha chegado o decreto da minha execução.

 

 

André Balbo é cofundador e editor da Lavoura, revista de literatura brasileira contemporânea. Autor dos livros de contos Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio, 2018) e Estórias autênticas (Patuá, 2017). Foi cocurador da Casa Philos na FLIP 2018. É editor, revisor crítico, preparador e parecerista de textos de prosa.

www.revistalavoura.com.br

 

 

 

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