Destino – conto de Cinthia Kriemler

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Destino

O telefone poderia ter sido usado. Se houvesse um telefone. A porta poderia ter sido aberta. Se as chaves estivessem na fechadura. A janela poderia ter sido uma saída. Se não fosse cercada por grades que impediam a passagem. A realidade é que não havia nada que pudesse ser feito. Fatalidade, foi o que as pessoas disseram. Destino. Eu sei. Mas sei agora. Porque tem um momento em que a gente se dá conta de que os fatos não são consequência de coisa nenhuma. Eles apenas são. Nada de ação e reação. Nada de crime e castigo. Apenas uma sina debochada que ri do nosso empenho ridículo em entender tudo, analisar tudo, explicar tudo, mudar tudo. Aconteceu. Foi o que tinha de ser. Porque sempre é o que tem de ser. Destino. Destino, sim.

Eu acordei no hospital. E ainda era de noite. Mãe, mãe!, chamei sem falar com a boca. Mas não pensei em Júlia. Talvez porque as crianças só queiram mesmo as suas mães nos momentos de medo. Mas mamãe não estava lá. Nem poderia estar. Não enquanto o dia não amanhecesse e fosse hora de ela voltar para casa. Os passos sem ritmo na escada, o corpo cambaleando, mostrando que algum cliente da véspera tinha se demorado o bastante para bancar uma bebida. A porta sendo fechada quase sem ruído, para não nos acordar. O suspiro fundo, quase um expurgo. Ainda levaria umas duas horas até que ela se deparasse com a algazarra de vizinhos e bombeiros na calçada. Para que ela tentasse entrar à força no prédio e fosse impedida por muitos braços. Para que ela soubesse de Júlia e de mim.

Júlia. Onde ela está? A dor no peito e a falta de ar não me deixando terminar o pensamento. Pessoas estranhas indo e vindo, mãos me provocando desconforto. Medicamentos sendo aplicados pelo soro, gota a gota. A garganta machucada por um tubo. Pedaços de memória se intercalando ao sono induzido.

Eu vivi o pesadelo um dia depois. Num instante, a minha mãe sentada ali, ao meu lado, me deixando feliz. No outro, a percepção de que aquela mulher na cadeira não estava lá. Júlia também não estava. Nunca mais estaria. Talvez mamãe estivesse com ela em algum desses lugares aonde só as mães conseguem ir depois que uma cria morre.

Eu perguntei o que tinha acontecido com Júlia. E a mulher destruída sentada na cadeira ao meu lado respondeu. Sem omitir detalhe. Era assim entre nós. Nenhuma mentira piedosa. Nenhum faz-de-conta. Ela assumiu a culpa pelas velas que tinham ficado acesas em cima da geladeira. Duas. Para os santos. Uma para o Menino Jesus de Praga, outra para a Nossa Senhora das Graças. Lembranças de uma fé aprendida com a avó que a tinha criado. Aqueles merdas de santos surdos e cegos que nunca faziam nada de bom. Eu odiava os santos. E odiava a minha mãe que se deixava enganar por eles. Mais tarde, reconsiderei. Afinal, Júlia tinha morrido. E eu me dei conta de que a morte é uma benção. Coisa dos santos. Parei de odiá-los.

Quando mamãe foi condenada, eu tinha 12 anos. E se Júlia fosse viva, já teria feito um ano. Júlia. Tão pequena, tão engraçada naquelas fraldas de panoque eu tinha raiva de ter que lavar. Engatinhando pelo chão imundo da quitinete abafada como um cachorro pequeno. Eu nunca soube quem era o pai dela. Mas também nunca soube quem era o meu. Mamãe vivia repetindo que homem só serve pra foder. De um jeito ou de outro. Dizia isso com uma risada debochada que eu só entendi mais tarde. Fiquei sem a risada dela bem antes de o juiz mandá-la para a prisão.

Negligência e abandono de incapaz. Pena máxima de três anos. Poderia ter sido menos, mas é que teve o incêndio. Mesmo involuntário, causou a morte de Júlia. E causou também a ira do juiz. Pena máxima de seis anos, e multa. Era para ter sido ainda pior. Queriam acusá-la de assassinato, porque ela nos deixava trancadas e sem chave, mas o advogado de defesa se lembrou das grades. E convenceu o juiz de que Júlia e eu teríamos podido escapar se não fosse pelas grades fixas instaladas irregularmente no imóvel. Que os bombeiros teriam podido entrar pela janela se não fossem as malditas grades de ferro.

Eu nunca mais vi minha mãe. No orfanato, ficava imaginando o dia em que ela sairia da prisão. Nós iríamos morar juntas de novo. Num lugar sem grades. E eu lhe diria para deixar as chaves de casa comigo, jurando que não abriria a porta para ninguém. E eu lavaria a roupa dela todos os dias, para arrancar aquele cheiro entranhado de suor e porra. Talvez eu até pudesse estudar. Agora, não tinha mais a Júlia para eu tomar conta. O pensamento me deixou com raiva de mim. E eu bati a cabeça contra a parede até sangrar. Não me levaram para o hospital. Mas ficou tudo bem.

Mamãe morreu numa briga de presas, dois anos depois de ir para a cadeia. Amanheceu com o pescoço quebrado. Eu só fiquei sabendo quando fugi do orfanato. Já tinha quatro meses que ela estava morta.

Demorei dois dias para chegar na casa da minha tia. Carona debaixo de chuva é mais difícil. Mas eu dei sorte. O caminhoneiro que me ajudou era até bonito, e eu nem tive nojo de chupar aquele pau suado de estrada. Ele quase me comeu lá mesmo na boleia, mas na última hora, não sei por quê, resolveu que era melhor não trepar com criança. Cagão. Eu podia ter contado pra ele que o segurança do orfanato não se importava com isso. Mas não disse nada. Achei graça de ele pensar que eu era virgem.

A tia não gostou de me ver. Azar o dela. Eu não tinha pra onde ir e não ia deixar ninguém me pôr para correr. Aquela casa apertada era tão dela quanto da minha mãe. Meu avô que deixou quando morreu.

Comecei a estudar à noite, mas não deu certo. A minha cabeça não dava para os livros. De dia eu lavava, passava, limpava a casa e cozinhava para a família toda. A tia achava que daquele jeito ia me fazer ir embora. Fui não. Mas larguei a escola.

Com o tempo, fui deitando com uns homens. Primeiro, foi o primo. A gente trepava depois que todo o mundo ia dormir. Às vezes, ele me comia a madrugada inteira. Apressado como todos os meninos. Uma noite, nós fizemos barulho demais e o tio acordou. Levou o filho para fora de casa e lhe deu uma surra. Depois que voltou, se trancou comigo no quarto e abaixou as calças. Se é de pica que tu gosta, vai conhecer pica de homem, disse com raiva, e se enfiou dentro de mim. Nunca mais o primo voltou. O tio voltou todas as noites.

Quando minha tia descobriu, me botou pra fora de casa. Vagabunda, piranha, vadia, puta. Isso. Puta. Como a minha mãe. A gente se acostuma. Faz por dinheiro, por prazer, por rotina. Até que uma hora o corpo repudia e quer parar. Mas não pode. A gente então se pega com os vícios. E a cara e o cheiro do cliente deixam de importar.

Eu me descuidei. Igual à minha mãe. Não percebi o moleque crescendo dentro de mim. Quando fui tirar, ninguém mais queria arriscar. Quase não tive barriga, mas a cintura desapareceu. Perdi os clientes que gostavam das meninas magras. Apareceram uns outros que tinham fetiche em grávida.

O menino nasceu prematuro, num feriado santo, mas a única coisa em que eu pensava era na grana que eu estava perdendo sem trabalhar. O mais esquisito é que fui gostando daquele pedaço de gente que chorava dia e noite querendo as minhas tetas. Aprendi a rezar para os santos em cima da geladeira velha. Menino Jesus e Nossa Senhora das Graças. E fui me esquecendo de que era sozinha, de que era puta. Fui achando que podia largar a bebida, que podia trabalhar com faxina, em cadeia, em posto de gasolina. Fui ficando mole. Fazendo menos clientes.

Ontem à noite eu não fui trabalhar. Um cansaço que eu nunca senti antes. Uma vontade de ficar com o menino, de não deixar ele em casa sozinho. Ele me olhando curioso, estranhando a minha presença, agitado com a novidade. Nós dois olhando um para o outro. Até dormir.

Acordar é que é o pesadelo.

Faz meia hora que minha mão esbarrou no corpinho morto dele. Frio. Duro. Tentei de tudo pra fazer ele viver de novo. Sacudi, bati no peito, gritei, implorei aos santos cegos e surdos, santos de merda, santos do caralho! Até me lembrar que pra esses filhos da puta a morte é uma bênção.

Mas meu menino não vai sozinho. Não vai como a Júlia, sem abraço de mãe. Espera um pouco, bebê. Só um pouquinho. Está vendo esse fogo lindo que a mamãe fez com as velas dos santos? Está sentindo o seu corpinho frio se esquentando de novo? Está gostando do abraço da mamãe? Espera, bebê, não fica com medo. Espera que a mamãe já vai.

 

 

Cinthia Kriemler é contista e romancista. Carioca, mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance. 2017); Na escuridão não existe cor-de-rosa(Contos. 2015 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos. 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012).

Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de várias antologias de contos e de poemas. Tem textos publicados em: Revista InComunidade, Revista Gueto, Revista SAMIZDAT, Mallarmargens, Germina, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos.

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This Article Has 4 Comments
  1. Jarbas Siebiger Reply

    A despeito da sucessão trágica, um ótimo conto. Tocante.

  2. Joakim Antonio Reply

    Navalha na carne e um espanto no cerebelo.

    Parabéns, Cinthya Kriemler.

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