Os contrários e a percepção de distâncias construídas – Tarso de Melo, Íntimo desabrigo

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Tarso de Melo – Íntimo desabrigo – Alpharrabio Edições e Dobradura Editorial, 2017

 

Os contrários e a percepção de distâncias construídas
Por Jean Narciso Bispo Moura

 

 

Íntimo desabrigo (Alpharrabio Edições e Dobradura Editorial, 2017) é o novo livro de poesia de Tarso de Melo. O título de imediato nos remete a um oximoro, os contrários e a percepção de distâncias construídas, regem a identidade constitutiva desta obra poética.
O livro traz na capa, o branco, em quase toda sua constituição visual, como quisesse dar resposta semiótica a um sem-número de possibilidade desencantada diante de um emaranhado que só pode ser aliviado no silêncio e no seu esgarçamento, depois de uma longa e exausta tentativa de entender a redoma feita para depositar humanos.
Ao abrir o livro, o autor começa o seu registro poético com o poema íntimo desabrigo, ideia que toca em cada canto do meu sentido, impera ali uma consigna de contrariedade frente ao mundo social, um deslindamento do desequilíbrio incitado pela distorções amplificadas pela produção material(riqueza) formalmente produzida pela maioria e interceptada no nascedouro.
Tarso descama na sua poesia uma compreensão aguda do tratamento dado pelos poderes constituídos à população agregada, que serve apenas como mantenedores da máquina social. O poeta parece sentir as dores do outrem, colocando-se em situação de alteridade, no bem moldado – à gosto de alguns – tecido social.
No poema Manu, apresenta-nos como trouxesse luz de uma estrela distante e diz na página 9:

 

dizem que deuses fazem tudo

um deus que desfizesse
talvez tivesse hoje a minha fé

 

Neste pequeno poema, de grande força poética, pondo um lume nas injustiças, fazendo o homem conviver num permanente íntimo desabrigo, e somente aquele dotado de insensibilidade e/ou ocupante de espaços suntuosos no corpo social, seria capaz de silenciar com sossego num íntimo abrigo. Aqui há a recusa assídua aos visíveis despautérios, nascente em todo cadafalso social. O poeta no fundo branco do referido texto recomenda que os deuses ou deus portentoso, da façanha de desfazer os malfeitos, seria de pronto merecedor de sua fé. Ele aponta a dureza de sentir a existência, as suas agruras e a visível ausência de não ter a potência desejada para reverter na gênese a realidade. É um poema que carrega no seu avesso forte ímpeto pelo retorno do homem ao seu estado de natureza como tão bem redigiu o filósofo Jean-Jacques Rousseau, é o refazer do estado primeiro.
Tarso ancorado na sua poética anterior, superabunda, capta todo um movimento existencial cotidiano, sendo que ele se encontra neste momento em um ponto mais privilegiado para ver e auscultar o humano.
Neste livro, ele expõe de modo surpreendente as veias da contingência: a coletânea transborda grandes estalos mentais.
Há na poesia dele um humano descolado das coisas, uma simbólica represália semântico-socialista contra a amálgama de homens e mulheres, de poucas e nenhuma posse, velados e vigiados; todos propositadamente acomodados.
Em Tarso há uma vontade de dizer, não pelo ato em si, solitário e unívoco, mas uma voz que abrigue outras vozes, silenciadas pelo modelo vigente: demolidor de potenciais insurgentes.

 

Pag. 18,

Cadernetas

Um dia enfim, você percebe
As que ficaram em branco
Eram as que mais tinham a dizer

 

Nele a indagação não afana o intento de amenizar o íntimo desabrigo, desvela-se na sua poética, que pensa o mundo como algo não natural.
O Íntimo desabrigo vê o homem e a sua história, quer que ele tome para si o seu lugar de sujeito ante o atávico papel de coisa secundariamente humana.
O poema de nome Shodô, diz  de um poema político que a ninguém coube escrever/ e segue em outro verso /quando escrevo abismo quando escrevo caio quando desabo desabito-me/.  Pag. 22.
Há um empenho do poeta metaforicamente acorrentado, no intuito de escapar dos grilhões, unindo-se a uma luta histórica de pessoas não rendidas ao íntimo abrigo. Pag. 23.
Dizem que ele mora aí. Atrás das placas antigas, das folhas metálicas, dos vidros que se foram. Pag. 24. Neste poema em prosa, há marcas de anotação da perversidade cometida pelo homem contra o seu semelhante, na cena descrita pelo poeta, o cenário econômico torna os despossuídos, seres/coisas não visíveis.
A grande Mente Social adestra o modo de pensar, da maioria, para seguir adiante os passos e ver o outro, quando o vê, em estado de deterioração, apenas como inoportuno e adepto da desídia.
O poema Cinza transmite inquietação, na visão do poeta, a vida é penosa demais para ser vivida inteiramente acordada, por isso o sonho é tão fundamental, o título também carrega uma duplicidade no seu âmago, há uma ideia oculta de incêndio em estado final, a palavra cinza, aqui vive recôndita no contexto desta singularidade humana.
Há um controle social, o já ressaltado sistema, governa o nosso sentimento de liberdade, as cordas permitem pelo seu comprimento até onde alguns podem ir e como a elas estamos ligados, o humano jamais atinge a sua potencialidade neste modelo, principalmente o brasileiro, que parece apreciar o seu aparente sistema de castas, demonstrando pouca ou rara variação no estrato social. Pag. 61.
Há uma distância do que poderíamos ser e do que somos. Um terrível e inclemente paradigma de subordinação e condicionamento, mantido pelos eficientes instrumentos de modelagem e arrefecimento.
O novo homem imaginado pelo poeta talvez capturaria em suas mãos e pensamento uma sociedade mais equânime.
O termo sem registro do poema eles querem mais é uma pintura denunciando as injustiças sociais revelando um luminar lapso de quem por conveniência, ausenta-se quando deveria investigar e punir delitos, mas se entranha num corpo de domínio e asfixia de pequenas brasas que poderiam em algum momento ampliar-se e torna uma fogueira, aludo o poema da pag. 20.
O texto Eles querem mais faz ponte comunicativa com Cinzas, mostra um visível antagonismo de forças desiguais, o trunfo dos poderosos está na caracterização formal de um Estado Democrático que permite o cidadão recorrer no balcão da administração pública, e se o expediente for bem utilizado o papel timbrado, na maioria das vezes, terá outros fins, não os rezados em termos legais.
O poeta conclui a sua obra com o poema Toda sentença é um antipoema, apresentando a sentença dada ao jovem Rafael Braga Vieira, nela vemos o Estado pondo um dos seus gigantes esmagadores, principalmente da população pobre, periférica e preta, tão subjugada e sem voz, deferindo o destino do rapaz cuja única testemunha válida é a do policial, sem qualquer coleta e confronto testemunhal de um terceiro. O agente público, o mesmo que mantém e conserva tudo que vemos; figura mantenedora da ordem de pessoas e coisas.

 

 

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Jean Narciso Bispo Moura  é poeta,  autor de 6 (seis) livros de poemas, o mais recente “Retratos imateriais”, 2017, é também licenciado em ciências humanas, editor responsável pela Literatura e Fechadura – Revista Digital. Estreou em livro no início dos anos 2000, com o título A lupa e a sensibilidade, também é autor de 75 ossos para um esqueleto poético (2005); Excursão incógnita (2008); Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011) e Psicologia do efêmero (2013).

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